“Perderemos nossas vidas hoje, e você perderá seu negócio”

“Perderemos nossas vidas hoje, e você perderá seu negócio”

É uma mensagem desesperada aquela que se encontrava nas imagens apresentadas, na quarta-feira, em diversos noticiários televisivos da RTP, a propósito de uma acção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de resgate de dezenas de menores e jovens adultos escravizados em Riba d’Ave, Vila Nova de Famalicão, para rendimento futebolístico. A operação concedeu à semana portuguesa um involuntário protagonista: o presidente da Assembleia Geral da Liga Portugal e rosto da “academia de futebol” Bsports. É agora suspeito da prática do crime de tráfico de seres humanos.

A caligrafia da impressionante mensagem era particularmente cuidada, o que não impediu alguns erros de português. Estava afixada numa parede da dita academia. A pixelização esconde a indicação do destinatário, o que não impede que ele seja óbvio. Por baixo do nome escondido, um aviso dramático: “Se hoje não recebemos nosossos passeportes nos suicidaremos, e perderemos nossas vidas hoje, e você perderá seu negócio”. A isto chegou o negócio do futebol.

A mensagem é uma eloquente demonstração do imenso desamparo em que são colocadas múltiplas crianças de vários lugares do mundo – de África e da América Latina, sobretudo – aliciadas a concretizar o sonho de poderem ser as futuras estrelas do firmamento futebolístico.

O modelo mais invejável dessa aspiração continua a ser o do menino Lionel Andrés Messi que, em Dezembro de 2000, tinha então 12 anos e notórios problemas de crescimento, deu o passo que o tornaria jogador do Barcelona Football Club. É provável que alguns não acreditem que se tornarão, como ele, campeões do mundo, mas todos julgarão possível ter um futuro feliz em algum gigantesco estádio de futebol. Alimentar a quimera – ou espancá-la – pode ser, por si só, um negócio.

O desejo de, ao futebol, destinar a prole é aliciante para muitos pais, que julgam que os relvados são o lugar ideal para os filhos conseguirem alcançar o sucesso. Algumas famílias podem endividar-se ou arruinar-se para não privar os filhos da hipótese de um bom futuro.

O anseio de ver nascer novos Messis é também o sonho dos clubes e dos agentes que em torno deles gravitam. Crianças baratas podem, em alguns anos, render-lhes fortunas. Podem ser lotarias premiadas, mas, se o não forem, não chega a haver prejuízo porque foi com o dinheiro das crianças ou dos seus pais que se apostou.

Ao presidente do Sindicato dos Jogadores, Joaquim Evangelista, devemos uma chamada de atenção avisada: “Custa-me acreditar […] que ainda haja quem não compreenda o quão errado é retirar um menor de idade do seu âmago familiar e querer que, numa idade em que deve divertir-se com os amigos, estudar e ter uma vida repleta das experiências normais de qualquer criança, lhe seja vendido diretamente, ou através dos seus pais, o sonho de que com a mudança de país e o foco diário no futebol abrirá a porta da elite do futebol mundial” [1]. A seguir, Joaquim Evangelista ironiza, dizendo que “nesta indústria existem muitos ‘beneméritos’, que trabalham pelos miúdos e apenas cobram uma modesta quantia aos pais e familiares por tão generosa oferta”.

O dirigente sindical considera que “Portugal é um autêntico entreposto de jogadores, o paraíso dos agentes e recrutadores sem escrúpulos, bem como das redes criminosas ligadas ao tráfico de seres humanos, que apostam nos clubes locais e com pouca visibilidade, que se prestam a ser ‘barrigas de aluguer’, qual laboratório de talento para testar as qualidades futebolísticas dos jovens recrutados”.

É deplorável que o tema da exploração futebolística de menores tenha pouca repercussão e que não se tirem consequências da experiência do presidente do Sindicato dos Jogadores: “Nos últimos anos apoiámos financeiramente com estadia, alimentação e voos de regresso aos respetivos países de origem dezenas de jovens, brasileiros, argentinos, colombianos ou provenientes de países do continente africano como a Nigéria, o Gana ou a Guiné”. Estes rapazes tinham em comum “o facto de terem entrado em Portugal de forma irregular, com a promessa de um contrato de trabalho, habitação e alimentação garantida num clube, acabando a viver em condições miseráveis ou ao abandono”. As instâncias que, da Federação Portuguesa de Futebol ao governo, poderiam ajudar a encontrar soluções não se quiseram mobilizar.

Agora, Joaquim Evangelista diz lamentar “profundamente” que num domínio tão importante, “que envolve o direito à infância e o respeito por direitos humanos”, Portugal “continue a ser um misto de inércia, revolta circunstancial sempre que existe uma notícia com maior destaque mediático e sentimento de impunidade para aqueles que lucram impunes com estas práticas criminosas”.

Para começar, impor-se-ia pôr termo à complacência social perante os criminosos e os seus cúmplices, os seus embaixadores, que usam o futebol para todo o género de malfeitorias.

 

 

 

[1] “Portugal é o paraíso dos agentes e recrutadores sem escrúpulos”. Público, 16 de Junho de 2023